Imagens do cotidiano ritual reforçam herança de matriz africana
Os instantes eternizados por Denise Camargo nas imagens da exposição E o silêncio nagô calou em mim alforriam as crenças e tradições africanas sufocadas no preconceito de uma nação que insiste em negar ou desconhecer traços indeléveis de suas próprias raízes. Em cartaz no Museu Nacional dos Correios de 16 de outubro a 30 de novembro, a mostra traz 29 imagens acompanhadas de textos, trilha sonora composta especialmente para o projeto, um vídeo e um ambiente interativo.
As lentes de Denise focam a cultura afro-brasileira ao entrar no espaço mítico-ritual do candomblé, revelando o processo de criação da artista no território sagrado dos ritos. “Parti da premissa de que o território sagrado das cerimônias de candomblé é um espaço de experiência, de imersão cultural, de contemplação e respeito ao acervo de saberes”, detalha.
O resultado do trabalho surpreendeu até a própria fotógrafa, que sempre pensou em tirar o tema do lugar comum. “Em geral, o que se fotografa são os rituais públicos, que são lindos, muito animados e de uma plasticidade ímpar. Mas a minha proposta é reflexo de uma convivência, um mergulho, uma permissão interna. Quis acrescentar algo àqueles que não conhecem o candomblé e lancei mão de uma luz singular para não tornar o registro fotográfico tão óbvio”, observa Denise.
A curadoria de E o silêncio nagô é de Diógenes Moura, escritor, editor, roteirista e curador de fotografia da Pinacoteca do Estado de São Paulo entre 1998 e maio de 2013. Moura endossa que a exposição reforça o debate contemporâneo sobre a diversidade étnica e cultural do Brasil como um patrimônio imaterial, desconstruindo visões errôneas e estereotipadas, tão recorrentes, sobre a realidade afro-brasileira.
Segundo o curador, a mostra promove uma ruptura das percepções equivocadas dos terreiros, difundidas, entre outros fatores, pelo estigma brasileiro de não buscar entender suas próprias raízes. “E o silêncio nagô trata do silêncio profundo diante do desconhecido, do que poderá ir do ontem ao muito além, desse corpo índio e africano que temos obrigação em reconhecer, que somos nós, sem abortar Macunaíma”, pondera.
Diógenes enfatiza que a coletânea de Denise é a revelação das coisas que nos pertencem, do que temos direito, do que somos nós. “Trata da existência dos que não gostam de mentir, dos que assumem o próprio rosto. Dos que não têm medo de seguir adiante como possuidor de uma humanidade distinta, de uma protocélula impregnada de mitos que dançam dentro do nosso corpo/memória insistindo em nos fazer despertar”, adianta.
Silenciando a exclusão
E o silêncio nagô coloca em circulação, de maneira inédita, ideias sobre um objeto artístico geralmente renegado à invisibilidade. É uma exposição enriquecedora tanto em seu conteúdo quanto na forma de proporcionar a aquisição de conhecimento.
Acessível aos deficientes visuais e ao público de todas as camadas sociais, a coletânea alia tecnologia e arte em um só espaço. Além das imagens, da trilha sonora, de palestras da artista e de convidados, de oficina de formação para educadores, o projeto contempla sinalização podotátil que auxiliará a visita de cegos. Eles receberão na entrada da sala um aparelho com audiodescrição das imagens, garantindo total autonomia durante o percurso expositivo. “Meu registro será imaginado por eles. É uma troca interessantíssima e enriquecedora para os dois lados”, empolga-se Denise.
Para a artista, proporcionar acessibilidade ao espaço expositivo e facilitar o acesso à arte é viabilizar um aspecto da democratização social. “O Brasil tem diretrizes de acessibilidade e os artistas e produtores devem se preocupar em cumpri-las”, frisa ela, referindo-se à Lei nº 10.098/2000.
Fabiane Beneti, da Empresa Livre, assina a produção-executiva do projeto, que é patrocinado pelos Correios e realizado pelo Ministério da Cultura, por meio da Lei de Incentivo à Cultura do Governo Federal. E o silêncio nagô tem apoio do Museu Nacional dos Correios, em Brasília – DF, e do Centro Cultural dos Correios em Salvador – BA, onde a exposição faz itinerância, de 19 de dezembro de 2013 a 22 de fevereiro de 2014.
Sobre
Denise Camargo
Fotógrafa e pesquisadora, doutora em Artes (Unicamp), mestre em Ciências da Comunicação (ECA-USP), graduada em Jornalismo (ECA-USP). O currículo de Denise contempla as exposições fotográficas Antologia da fotografia africana (Pinacoteca do Estado, São Paulo – SP, em 1998), e São os filhos do deserto onde aterra desposa a luz (Espaço Porto Seguro de Fotografia, São Paulo – SP, 1999). Em 2005 foi convidada pelo Consulado Americano para integrar o projeto Herança Compartilhada, ensaio fotográfico feito nas cidades de Nova York e Nova Orleans, sobre as influências da cultura africana nos Estados Unidos (trabalho exposto em maio/2005); Em 2006, realizou o projeto curatorial e a coordenação geral da exposição Quilombolas, Tradições e Cultura da Resistência (fotografias de André Cypriano), e foi responsável pela edição do livro homônimo. Denise também foi contemplada com Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-brasileiras (2010 e 2011) e com o Programa Cultura e Pensamento (2007 e 2010). Os mais recentes prêmios de reconhecimento pelo seu trabalho vieram da Fundação Cultural Palmares (Prêmio Palmares 2012, para publicação da tese de doutorado Imagética do Candomblé, uma criação no espaço mítico-ritual, cujas notas visuais geraram a exposição E o silêncio…) e o Prêmio Brasil Fotografia 2013, para o desenvolvimento da série Memórias da espuma rosa. Os temas a que recorre artisticamente exploram questões da identidade cultural brasileira, imagem na cultura afro-brasileira, processos de criação, cujo objetivo é a difusão da imagem fotográfica, por meio de projetos socioculturais.
Diógenes Moura
Escritor, editor e curador de fotografia independente, entre 1998 e maio de 2013 foi curador de Fotografia da Pinacoteca do Estado de São Paulo onde realizou exposições, reflexões sobre o pensamento fotográfico e possibilitou o reconhecimento do acervo do Museu como um dos mais importantes da América Latina, hoje com cerca de 700 imagens de fotógrafos brasileiros. Em 2013, realizou a curadoria/edição das mostra Busca-me, de Boris Kossoy (Galeria Berenice Arvani) e A Construção de um Olhar – Fotografia Brasileira no Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, no Centro León Jimenes, na República Dominicana. Diógenes também publicou o livro São Paulo de Todas as Sombras, edição que reúne fotografias (Lucia Guanaes/ Marc Dumas) e contos/polaróides urbanas de sua autoria. Em julho último realizou a mostra e o livro homônimo Butterflies and Zebras, de Mario Cravo Neto, que ficará em cartaz até novembro na Estação Pinacoteca, em São Paulo. Foi eleito o Melhor Curador de Fotografia do Brasil pelo Sixpix/Fotosite, em 2009. No ano seguinte recebeu o prêmio APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte de melhor livro de contos/crônicas com Ficção Interrompida – Uma Caixa de Curtas (Ateliê Editorial). Com o mesmo título foi finalista do Premio Jabuti de Literatura 2011. Em 2012 foi curador de mostras importantes como Andy Warhol – Superfície (Museu da Imagem e do Som São Paulo), Interior Profundo – Mestre Júlio Santos (Pinacoteca do Estado de São Paulo) e Dos Filhos desse Solo? exposição que representou o Brasil no PHOTOIMAGEM 2012 e que acaba de receber o grande Prêmio da Crítica pela Associación Dominicana de Críticos de Arte, INC/2013.
Fonte:
EMPRESA LIVRE